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[OPINIÃO] Manifesto por um Processo Verdadeiramente Eletrônico

  • Jivago Delleon Göergen, Advogado
  • 9 de mai.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de mai.


Um mímico observando o avanço tecnológico, gerado por IA.
Um mímico observando o avanço tecnológico, gerado por IA.

Hoje vive-se uma era marcada por transformações tecnológicas relevantes. Nas últimas duas décadas, testemunhamos avanços significativos em comunicação digital, segurança da informação, automação e inteligência artificial. Este progresso não passou despercebido pelos Tribunais do Poder Judiciário brasileiro, que, em busca dos benefícios da digitalização dos processos, implementaram diferentes sistemas de processo eletrônico. Assim surgiram o PJe, o ESAJ, o PROJUDI, EPROC, entre outros. Cada um com sua lógica, sua interface e sua própria infraestrutura técnica, moldados às particularidades e experiências de cada Tribunal.

Os méritos dos sistemas de processo eletrônico são diversos. São, em teoria, disponíveis 24 horas por dia, com camadas de segurança criptográfica, registro de logs para auditoria, redundância de sistemas de segurança, economia significativa em papel, transporte e espaço físico. O processo eletrônico também democratizou o acesso à informação processual, tornando muito mais acessível a informação que antes exigia que a parte telefonasse ao fórum ou ao advogado para obter.

Apesar de originarem-se de uma tentativa louvável de acompanhar a evolução tecnológica, esses sistemas acabaram por criar um verdadeiro mosaico de plataformas incompatíveis entre si. O resultado é um ambiente jurídico fragmentado, em que o operador do direito precisa navegar por diferentes sistemas, com diferentes interfaces, exigências técnicas e operacionais, demandando tempo para aprendizado e credenciamento. E o que era para agilizar o serviço, acaba virando um verdadeiro entrave.

Procurar uma simples informação, ou protocolar uma petição, receber intimações, pode equivaler a procurar uma agulha num palheiro burocrático, onde o palheiro representa a vasta quantidade de sistemas paralelos adotados pelos mais diversos órgãos públicos do país.

Mas ainda que todos os sistemas fossem centralizados em um só, algo que o CNJ vem tentando há anos fazer com o PJE, ainda assim há diversos aspectos dos sistemas que não seriam resolvidos, ou mesmo aprimorados, pois há um limite lógico comum a todos esses sistemas: todos eles emulam a experiência com o processo em papel.

A transição do papel para o digital foi, até agora, meramente mimética. Arquivos PDF substituem os autos físicos, mas a lógica, a linguagem e as limitações do papel continuam a reger o processo eletrônico. É como digitalizar um livro manuscrito e esperar que ele se comporte como um software interativo, mas essa interação se limita ao folhear das páginas. A virtualização foi parcial, limitada, e as oportunidades tecnológicas foram em grande parte desperdiçadas.

Apenas para citar uma possibilidade, um dos aspectos desperdiçados é a manutenção da identificação das partes no processo. Ainda que o princípio do juiz natural tenha função garantista, ele também representa uma limitação herdada do papel. Juízes, como quaisquer outros seres humanos, são falíveis e sujeitos a influências, opiniões, preferências, pressões internas ou externas, e até desvios éticos. Um juiz parcial, que não se declare impedido ou suspeito, pode conduzir um processo de maneira tendenciosa sem que isso seja percebido a tempo de reparação. E o incidente de suspeição é moroso, caro, e mesmo o duplo grau de jurisdição padece das mesmas falhas humanas. E exemplos de desvios de ética por magistrados existem aos montes.

Hoje, na era do processo eletrônico, o juiz natural permanece fixo e identificado, assim como as partes e os advogados. A manutenção da identificação das partes no processo eletrônico não é um impedimento técnico, o que certamente era no passado. Hoje é uma opção institucional por mimetizar o papel. Hoje seria tecnicamente viável — e talvez desejável — que os nomes das partes, advogados e do próprio juiz fossem ocultados durante a tramitação, com a identificação sendo revelada apenas nos momentos processuais estritamente necessários.

Mesmo que se mantivesse o juiz titular fixo, respeitando o princípio constitucional do juiz natural, sua identidade poderia ser ocultada das partes, evitando interferências externas, pressões políticas ou retaliações. O mesmo poderia ser aplicado às partes. E os avanços em inteligência artificial são a ferramenta que faltava, para processar e tratar as informações do processo, ocultando aquelas sensíveis.

Essa mesma lógica aplica-se à proteção do sigilo processual. Atualmente, mesmo em processos sob segredo de justiça, vazamentos ocorrem por meio de servidores internos com acesso ao sistema. A rastreabilidade de acessos, embora importante, não é solução definitiva. Primeiro, porque se trata de uma política repressiva e não preventiva. Não impede que o autor do fato vaze informações, mas sim possibilita que ele seja responsabilizado. Mas grande parte dos crimes são cometidos com a expectativa (ingênua ou não) de não deixar rastros. Segundo, o elo mais fraco da segurança muitas vezes é o operador humano. A ocultação da identidade das partes, dentro de um processo verdadeiramente eletrônico, seria um recurso de garantia do sigilo processual muito mais eficaz do que qualquer limitação de acesso à usuários credenciados.

As audiências de instrução, outro exemplo, poderiam ser facilmente substituídas — quando a complexidade do caso assim permitir — por sistemas de questionamentos pré-formatados enviados por advogados e juízo a um tabelião. O depoente se deslocaria ao cartório no horário de sua conveniência, e prestaria seu depoimento de forma igualmente juramentada, com igual responsabilidade penal. Essa prática aumentaria a celeridade processual, reduziria os custos e mitigaria o desgaste emocional das partes.

Da mesma forma, a eficácia do duplo grau de jurisdição também poderia ser aprimorado. Não são raras as vezes em que o tribunal ad quem limita-se a manter a decisão do juízo a quo “por seus próprios fundamentos”, sem proferir novo julgamento efetivo. Isso é um dos aspectos que revela o esgotamento do modelo tradicional, concebido para lidar com processos físicos. Um verdadeiro processo eletrônico poderia incorporar mecanismos de avaliação de sentença, com critérios objetivos de acerto das decisões — avaliado por outros magistrados de forma anônima — e de celeridade — avaliado por operadores do direito sem conhecimento das identidades envolvidas. E se a decisão recebesse uma avaliação negativa, um colegiado proferiria nova decisão, igualmente sujeita às avaliações mencionadas.

Essa proposta lembra os atuais sistemas de metas, já adotados pelos tribunais. No entanto, aqui não se trata de premiar a produtividade mecânica, a quantidade de decisões proferidas em um mesmo mês (o que geralmente é feito às custas da qualidade), mas sim a qualidade e razoabilidade das decisões. Um juiz que decida com justiça, de maneira fundamentada e célere, poderia receber incentivos. Se suas decisões fossem bem avaliadas pelos seus pares, e num prazo razoável de acordo com a opinião de operadores, o magistrado anônimo poderia receber bonificações. A posse de um processo e a demora em proferir decisão prejudicariam essas avaliações, adicionando incentivos diferentes para que processos antigos, esquecidos, fossem despachados.

Naturalmente, nenhuma dessas ideias é isenta de falhas. O que estou propondo aqui não se trata de um modelo acabado. São meros apontamentos que servem muito mais para apontar os limites do tradicional e as possibilidades que a tecnologia proporciona, provocando uma reflexão que é necessária. A tecnologia disponível hoje é suficientemente robusta para permitir que o processo judicial brasileiro rompa com as amarras do papel de uma vez por todas. É urgente reimaginar o processo não como um espelho digital dos autos físicos, mas como uma nova linguagem, uma nova lógica, e um novo paradigma.

Se é verdade que uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco, o elo mais fraco do Judiciário brasileiro é a persistência de modelos ultrapassados e ineficazes, que insistem em travestir o velho de novo. Se quisermos, de fato, um processo eletrônico — e não meramente digitalizado — é preciso coragem institucional, abertura ao debate e disposição para reformas estruturais profundas.

DELLEON GÖERGEN ADVOCACIA. Todos os direitos reservados.

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